A Parede

Dora está ansiosa.

Faz três anos que pinta por mero prazer que o ócio lhe proporciona.

Um passatempo que representa o melhor momento do seu dia.

Sentada numa cadeira confortável, com seu café morno em mãos, Dora observa uma parede branca dentro de uma sala escondida em um arranha-céu da Vila Olímpia.

Fugiu do sétimo andar, do seu escritório, dos números e prazos que sempre lhe rodeiam durante o horário comercial.

Nesse andar vazio, Dora está só.

Há duas semanas, presenteou Ana Paula, uma amiga da época do colégio, com um dos seus quadros.

Uma índia de meia-idade com uma faca na mão direita e um escalpo masculino na mão esquerda, nua, apenas com desenhos ornados no corpo como tatuagem. Sangue por entre os dedos e na face, como se tivesse passado a mão suja no rosto.

Mas, o que mais impressionou a amiga foi o olhar da nativa.

Olhos inocentes, mas vivos, selvagem, fria como a morte.

Dora não sabe o porquê daquele quadro ser um presente, já que não era uma pintura simpática.

Contudo, sentiu e lembrou da amiga após fumar um cigarro observando sua obra final… e assim fez.

Ao lado da cadeira, na sala branca, há uma sacola comum com tintas novas que aproveitou para comprar depois de um almoço em Moema.

Dora termina o café, coloca o copo plástico dentro da sacola e levanta se espreguiçando, andando em direção à janela que dá para a avenida.

Amarra seu cabelo olhando no reflexo do vidro translúcido.

A visão vai além da sala e vê inúmeras pessoas andando como se fossem formigas sem comunicação.

Dora não pertence mais a essa cadeia animal.

Ana Paula adorou o quadro.

Embora tenha ficado ressabiada no momento do presenteio, afinal, não era um quadro simpático.

Ficou impressionada com a desenvoltura de Dora, pela qualidade dos traços e, principalmente, com o olhar caótico da nativa.

De tão tocada, convidou alguns amigos do seu curso de mestrado em ciências sociais para que vissem a tal pintura em sua casa, regada a jarras de vinhos e cocaína.

Dora está ansiosa.

Volta a olhar a parede em pé, sob outra perspectiva.

Acende um cigarro, depois de soltar um “foda-se” quase inaudível,  fica ali, estática aos olhos do observador, porém em erupção interna.

Dora vê semelhanças entre ela e aquela parede.

Nove minutos, bituca no chão.

Pierre, amigo de Ana Paula, ficou entusiasmado com o quadro.

Bebeu três taças de vinho a contemplar o quadro sem esboçar nenhuma palavra.

Fitava a nativa com desejo de explicação, um incômodo que o abalou profundamente.

Já corado do vinho, perguntou a Ana Paula que falasse sobre o artista da obra.

Conversa terminada no banheiro, entre pó e suor.

Dora pisa na bituca e caminha com determinação até a sacola, pegando-a com a mão direita, enquanto puxa a cadeira com a esquerda.

Abre os potes de tinta acrílica, sobe na cadeira e começa a pintar a parede com as mãos.

De forma feroz e visceral, deixa a parede tomar forma através de suas sensações momentâneas, fazendo daquele momento apenas uma expressão da sua liberdade, de uma Dora que precisa morrer para que dela mesma nasça a felicidade.

Percebe a importância daquele momento e chora enquanto passa as mãos sujas de tinta no rosto.

Dora, inconscientemente, pinta-se, como a parede que já não é mais branca.

Após o almoço, ao pesquisar as inúmeras opções de tintas, atende ao celular que recebe a chamada ao som de Pumpkin Soup, de Kate Nash.

Era Ana Paula, eufórica, revelando que seu amigo Pierre, em conjunto a amigos artistas, queria conhecê-la pessoalmente com um convite formal para uma exposição para o próximo mês.

Dora, boquiaberta, ficou sem reação e desligou o celular deixando a amiga chateada, já que ela gostaria de contar também sobre sua aventura sexual com Pierre.

A parede está tomada de cores e sensações múltiplas.

Dora fuma mais um cigarro observando a parede.

Sem um sentido aparente ou signos representativos, a parede agora está viva.

Nove minutos, bituca no chão.

Borrada de tinta na face e com a mão completamente suja, caminha em direção ao elevador.

Deixa sua marca no botão e espera.

A porta se abre e três pessoas se espantam.

Um rapaz jovem pergunta o andar destinado.

Dora agora sabe seu destino.

Térreo.

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