“Pode entrar!”
Donald, um historiador consagrado, constrói uma tabela detalhada de seu novo trabalho.
Sentado em sua escrivaninha, realiza seu ato matutino e cotidiano de atualização.
“É preciso tabelar para fazer a organização trabalhar por si”, já dizia “A Cerca da Produtividade”, seu livro de cabeceira.
“Tô entrando!”
Sua sogra entra no cômodo junto com um prato de manga fatiada, seu jeito carinhoso de dizer bom dia.
“Vai uma manguinha aí?”
Donald olha a senhora de meia idade com seu sobretudo branco e um cinto rosa que segura a vestimenta junto ao corpo.
Não é Natal, mas se lembrou de mistletoe.
A senhora, com traços hispânicos, não tem estribos quando o assunto é sedução.
Já foi casada inúmeras vezes. Desde que entrou para a família, há dez anos, Donald já acompanhou dois de seus casamentos.
O primeiro, um piloto de AirBus comercial e internacional. Mais jovem, porém aparentava uma calvície que tece a meia-idade. Donald gostava dele, patrocinou diversas viagens a trabalho na qual saiam de seu bolso os custos.
O segundo, um presidente de um clube campestre da cidade. Embora seja chato, nunca foi tedioso. Talvez tenha sido o casamento mais divertido, daqueles que se pede bis.
Mas para se repetir, tem que se separar e se casar de novo. “Por isso não confio em casamentos tão divertidos”:
essa frase saiu da boca de Donald no dia da assinatura do divórcio.
Ressalto que, mesmo concebendo um aspecto comportamental um tanto ventoso e egóico, Donald tem muita fibra e estima pelo seu casamento, embora o matrimônio esteja em ruínas. Um grande felino trancafiado numa grade? Sim, mas pensa na porcentagem de poder e beleza que a sua união lhe dá.
“Vai uma manguinha sim, obrigado, Lady Burb!”
A sogra deixa o prato em cima da escrivaninha, tentando enxergar o estudo que está sendo feito. Consegue ver, mas não entender. Se encaminha para um pequeno espelho na prontidão de dar retoque no batom que combina com a cor do cinto em sua cintura.
Donald olha para a sogra com o canto dos olhos. Já faz anos que ela tenta o enfeitiçar, o escoltando e espreitando, num grau de causar suspiros de censura.
“Você vem de baterias de estudo incansáveis, meu jovem. Está na hora de dar uma espairecida, quem sabe dar uma caminhada no gramado ou conferir as uvas da próxima safra. Trancafiar-se aqui pelas manhãs é como esperar a morte, está um dia lindo lá fora”.
Donald confere o relógio de pulso e vê o quanto o estudo consumiu do seu tempo sem perceber.
“Lidar com a vida e a morte está acima dos meus cuidados, Lady Burb.”
A sogra lhe olha com o batom refeito, parecendo uma boneca, fechando a tampa do batom, obstinada a tirar Donald do ambiente de trabalho.
“Ter que acreditar nisso é desistir da vida, meu jovem. A vida está forrada de escolhas entre vida e morte. Você mudou muito nesses últimos meses sem minha filha aqui,”
Donald recolhe as folhas que serão reconfiguradas agora no computador.
“Eu lembro de você bem novinho, Donald. Cantava de galo aqui na vinícola todo final de semana atrás da minha filha. Vinha com seu skate, sem camisa, pulava na piscina, pedia uma tanga emprestada porque a cueca molhava. Você era outra pessoa.”
A coçada na papada que começa a aparecer pelos quilos a mais, demonstra nervosismo.
“Como eu era, Lady Burb? Eu continuo a mesma pessoa.
A sogra ri mostrando dentes afiados de piranha.
“Você era agitado, meu jovem. Você vibrava como um de menino do Rio, mesmo não tendo como surfar por aqui. Aproveitava ao máximo as pequenas coisas. Agora fala como se não conseguisse controlar a vida, quem dirá a morte, então!”
Donald passa a mão na narina como se o passado lhe rondasse nas memórias.
“Lembro quando descobriu o montanhismo, ficava de cabeça para baixo naquela corda, preso naquele cinto que parecia ceder a qualquer momento. Quando você coloca a vida em risco, ali você aprende a viver.”
Acessa no computador o tradutor para o e-mail em italiano que irá enviar.
“Eu estava germinando ainda, Lady Burb. Era uma criança, ainda estava na chupeta.”
A sogra apoia os braços na mesa, fazendo o sobretudo abrir um tanto, consumindo a atenção de Donald.
“Só se fosse anão, porque criança você não era. Você não era assim, amargo como catalônia. Você não é uma fração do homem que já vi.”
Donald fecha o computador portátil, louco, com as orelhas vermelhas.
“Desculpa a saraivada, meu jovem. Mas não aguento ver você como um adorno dentro desse escritório. Você tem que aceitar que está separado.”
Donald levanta arrastando a cadeira para trás. Dá de ombros na intenção de segar a conversa, tentando desvencilhar-se da facada cheia de veneno que a própria sogra tenta apostar.
“Para de arte, Lady Burb. Ela vai voltar.”
A senhora levanta o dorso e coloca as mãos no quadril.
“Você está usando seus estudos como bengala para não seguir em frente. Você ainda pode morar aqui comigo. Nós temos uma amizade, não temos?”
Donald pega a xícara apoiada num pires de porcelana bonito e toma o restante do café já frio.
“Fique o quanto quiser, coma a vontade. Estamos no Colorado, meu jovem, aproveite. Saiba que ela não irá voltar, você já não é aquele menino cheio de acnes para acreditar que o ocorrido meses atrás não se trata de uma despedida.”
Donald se aproxima de Lady Burb, mas não consegue falar.
“Do jeito que você está, meu jovem, você não consegue diferenciar o pedreiro do arquiteto. Eu estou encorajada em fazer você voltar a ser o homem que era.”
O rubor no rosto de Donald começa a sobressair com o limiar do perigo. Lady Burb é agente do caos, derramadora de batas sociais.
“Você vai murchar aqui dentro, meu jovem!”
Lady Burb se aproxima mais, fazendo as moléculas de Donald se chocarem em seu infinito particular.
“Você prefere ficar aqui nesse cubo ou conhecer o Hawaii? Será que você consegue diferenciar esses opostos?”
Lady Burb acaricia o pênis de Donald por cima da calça.
“Você consegue entender, meu jovem? Ou vai murchar de vez?”
O beijo voraz faz o cinto do sobretudo estourar, revelando nudez.
Donald joga o que estava em cima da mesa no chão, colocando a sogra em posição de frango assado, repousando a cabeça dela em cima do grampeador.
Donald a toca como se fosse um piano, alto, com a batuta em mãos, regendo uma orquestra de impulsividades que já foram sua companhia em fantasias de crimes adúlteros em seu banheiro.
Está realizando os pensamentos que sempre tiveram vez e que nunca deixou vir para a realidade.
Concretizando desejos impossíveis como um eletricista iluminando a Torre Eiffel.
“Foda-me, Donald. Foda-me como se fosse fazer história!”