Comercial

Todo peso do mundo no fofo do sofá.

O dia frio pede companhia, e o que Apolo tem é seu cobertor e a programação noturna da emissora com sinal gratuito.

Deveria estar trabalhando, sabe disso.

Postergou todos os minutos do seu dia e nada foi feito.

Sua cabeça pesa, a consciência pesa.

Qualquer movimento há a necessidade de uma disposição interna tão intensa que Apolo não consegue sair de uma inércia que não pode ser precavida.

O filme é antigo, mais velho que a própria idade de Apolo.

Poderia ter ligado o stremming, mas não há internet.

As contas estão atrasadas e o que lhe resta em sua casa é tudo o que tem.

Embora a película seja antiga, o filme é bom.

O que incomoda são as imagens analógicas, a dublagem dessincronizada, as pausas para os comerciais.

Apolo não reclama.

Não há mais o que resmungar.

Pensa que não pode cobrar da emissora aquilo que também não pode fazer.

“O filme poderia ser mais novo, mas eu também já não sou mais um garoto”.

Coça a barriga com as duas mãos, deixando um rastro vermelho de unha mal cortada em sua pança branca.

Meia noite de um sábado, que deprimente.

Busca um cigarro, mas acabou.

Apolo conta as moedas enquanto assiste o final do terceiro corte.

Os comerciais iniciam e Apolo deixa a preguiça de lado por um instante.

Raciocina que para o vício, a força de vontade aparece.

Pensamento sorrateiro que passa tão devagar e silencioso que não surte efeito de compreensão.

Mas o pensamento estava lá, eu vi.

O frio bate contra seu casaco de ficar em casa, que já contém manchas de todos os tipos.

“Um maço do vermelho, por favor!”

A abertura da cartela é imediata.

Um rapaz se aproxima.

“Tem um cigarro aí, meu amigo?”, “claro, porque não?”

Apolo cede o cigarro e o rapaz o isqueiro.

A volta para a casa é contra o vento, fazendo-o apressar o passo.

Seu cigarro é tragado pelo vendaval, fazendo Apolo o proteger com os dedos restantes da mão que o segura.

Abre o portão rapidamente e senta-se novamente no sofá.

O filme já começou e não há como voltar a cena perdida.

Dois toques na campainha.

Nem lembrava que ela funcionava.

Apolo poderia conferir o sistema de segurança, mas as câmeras já não funcionam pelo valor da manutenção.

“Quem é?”, “Você deixou sua chave para fora do portão.”

Confere e realmente as chaves não estão no bolso da calça.

O clima de suspense do filme traz a trilha sonora para o mundo real.

Apolo está com medo de abrir o portão, analisando o calçado do indivíduo pelas frestas inferiores do metal.

“Pode deixar aí que eu já pego.”

A bota preta não se movimenta.

Apolo analisa a possibilidade de o portão abrir.

“Acho melhor você pegar agora.”

O último trago no cigarro é massivo.

“Pode ir embora, eu já pego.”

O vento uiva durante o ápice da trilha sonora da película.

Ninguém se movimenta.

“Ta com medo, é?”

Apolo está completamente desconfortável.

O silêncio denota certeza para o interrogador.

“Eu posso abrir o portão se eu quiser.”

O som da televisão é alto e, provavelmente, o homem a escuta da rua.

Força não é sinônimo de Apolo, nem física, nem mental.

“Tá com medinho, é?”

Apolo está petrificado, um rato encurralado.

Escuta o miolo da fechadura girar numa sonoplastia angustiante.

O portão abre fazendo um ruído digno de um filme de terror.

O homem abre um sorriso enquanto olha Apolo sem esboçar reação abaixo de uma luz amarela em sua garagem sem carro.

“Você não vai deixar essa chave aqui pra qualquer um pegar, né?”

Apolo balança a cabeça num sinal negativo.

“Então vou deixar ela aqui pra você, tá bom?”

A voz calma e serena não condizem com o semblante demoníaco do homem.

A chave é largada no quintal, fazendo barulho no contato do metal com o piso de cerâmica.

“Tchau, tchau. Cãozinho medroso. Obrigado pelo cigarro.”

O portão se fecha e os comercias iniciam para a parte final do filme.

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