Uma fazenda. Cidade pequena, poucos habitantes e uma vida sem pressa. Um homem sem mulher. Filhos criados e preocupações sem grandes dimensões. Mas há segredos. Toda vida pacata demais, mesmo que não aparente, revela obscuridades sem precedentes. Todos sabem pouco e sabem muito. E o que se sabe, realmente, está escondido, rabiscado em cadernos antigos que, provavelmente, estão trancafiados e empoeirados. Antes do presente houve um passado. E no passado também houve um presente. Dependendo do estado de espírito, o passado e o presente talvez sejam a mesma coisa.
—
Um cachorro descansa o seu corpo velho em cima do sofá. Ele vem sendo um bom amigo e companheiro há anos. Não pergunta, não suspeita e não cutuca a ferida aberta. Por isso que é o melhor amigo do homem. Não importa o passado, nem o presente, ele estará ali, fiel. Diferente das pessoas, que traem e machucam internamente com o maior descaso. Porque não é fácil esquecer. E tampouco é difícil lembrar. Lembro como se fosse ontem, mas deixo tudo no seu devido lugar.
—
O Jaime está grande. Hoje já é homem de família, tem uma vida descente, uma boa mulher do lado. Ele me enviou semana passada uma carta com uma foto envolvida num pano vermelho. Na fotografia está o Jaime, sua esposa e o meu netinho. Nunca o conheci, embora já esteja com seis anos de idade. Também não sei se me conhece, depois de certa idade já não deve nem perguntar quem é o avô. Me parece ser um bom garoto. Tem o olhar e as sobrancelhas dela. Me remete ao passado. Me remete a olhares que nunca mais quero ver ou esquecer. Talvez seja bom não o conhecer. Esse povo da cidade grande não sabe nem conversar mais, muito menos mostrar sentimentos legítimos. Antigamente era tudo mais verdadeiro. Nem que seja para mostrar repúdio. Minha geração tem muito mais hombridade. Minha casa continua igual, tudo no seu devido lugar. Apenas o celeiro que contém bugigangas que nunca sei para o que usar, mas que me apego demais a elas.
—
Tem um escapamento de um Fusca 76 ali, novinho. Já tive um, ela gostava muito dele. Gostava de ir até o rio, até a cidade, já fomos até para Minas uma vez, acho que foi há uns trinta anos. Ela colocava a cabeça para fora para sentir o seu cabelo batendo freneticamente contra o vento. E ria sempre como se fosse a primeira vez. De tão apaixonada pelo carro, ela o levou quando decidiu me abandonar. Ela mal sabia dirigir. Me pergunto até hoje se foi ela mesma que saiu pela porteira afora dirigindo. Me corrói saber que outro homem encostou a mão no que é meu. Prefiro até pensar que ela saiu cambaleando com a minha caranga por aí e, de tanto vento na fuça, foi parar bem longe desse pedaço de terra que eu chamo de lar. Lar de um homem só. E de um cachorro também. Não seria justo com ele, coitado. Eu nunca abandonaria ninguém. Uma pena que nem todos pensam assim como eu. Ser humano é capaz de tanta besteira. Talvez a maneira mais saudável de se viver seja como levo a minha humilde vida. Com sossego, natureza, solidão e um pouco de rancor, já que ainda pertenço a esse planeta.